há muitas luas, quando ainda pensava que uma voz solitária clamando no deserto faria alguma diferença, escrevi um troço que, acho, pretendia ser um artigo (não era) reclamando da total falta de compromisso de editoras locais ao iniciarem a publicação de hqs que, diga-se a verdade, podem não ser seminais mas elevam o nível do jogo e deixam os leitores (pelo menos este leitor) com vontade de saber que porra acontece na sequência.
foi assim com BALAS PERDIDAS (STRAY BULLETS, El Capitán, editora do criador) que teve 8 números publicados em dois volumes por uma dessas editoras e desapareceu sem maiores explicações.
muito antes de as ‘crime stories’ voltarem à moda com 100 BULLETS, David Lapham produziu um dos materiais mais instigantes que já li e, claro, era um artista completo, escrevendo e desenhando todos os 40 #s além de dois especiais em cores de AMY RACECAR.
palavra chave aqui: contexto. a história se desenvolve num período de 20 anos e todos os elementos são importantes.
o #01 da série se passava em 1997 e mostrava um banho de sangue enquanto a dupla de criminosos Joey e Frank tentava se desencumbir de desovar o cadáver da namorada do chefão Harry. como era de se esperar, nada funciona como deveria, ou não haveria história, no máximo um punhado de painéis, uma vinheta ou pouco mais que isso.
o #02 volta no tempo até 1977 e introduz a protagonista da série (apesar de, como você já deve ter percebido, não estar presente em todos os números), Virginia “Ginny” Applejack que, pelos meus cálculos, devia ter então 7 anos de idade. ainda há bastante violência mas o foco narrativo muda pruma visão infantil e Ginny (Amy) passa por uma série de experiências que a tornarão uma menina diferente, começando por ser testemunha de um assassinato na saída do cinema onde acabara de assistir ao filme STAR WARS.
e assim sucessivamente. por vários números Lapham introduziu personagens, desenvolveu-os e lançou as fundações de uma história com escopo maior. Beth, Nina, Rose, Orson, Monster, Spanish Scott, o onipresente e nunca visto Harry além de muitos outros que, a primeira vista, não são tão importantes, funcionam quase como figurantes, mas que adiante terão seus momentos sob os ‘holofotes’ (tinta no papel).
Lapham leva a história mais como drama familiar e criminal do que como história de crime. tem personagens fodões? claro. mas o gibi não se resume a isso. e seus personagens também não. Monster, por exemplo, vê todas as mulheres como putas, exceto uma, que idealiza até as últimas consequências. Beth é a melhor amiga que Nina poderia ter, mas a primeira age quase sempre sem pensar no que vem depois e a segunda torna-se viciada. Ginny agora é uma menina violenta, briga na escola, se desentende constantemente com a mãe e, depois de sofrer uma perda irremediável, foge de casa.
os primeiros vinte e tantos números têm a melhor arte, mas todos os que li são muito bem escritos e, mais interessante ainda, podem ser lidos quase como histórias individuais que, como disse, formam uma tapeçaria maior.
um dos recursos mais bacanas bolados por Lapham é a personagem Amy Racecar, assassina, detetive, ladra, viajante espacial, que, em certo sentido, é muito parecida com os egos alternativos do personagem Calvin (o amigo de Hobbes, pra quem não lembra ou sabe)… óbvio que ela não poderia existir no ‘mundo real’ em que a série se desenvolve, mas a lógica interna desse mundo não é prejudica por ela, ah sim, ‘existir’.
as histórias, como toda boa história, não se resumem a pura e simples violência (duvido que eu tivesse saco de ler um troço assim, mais ainda de me encantar com algo que fosse só violento): tem romance, comédia e terror (além da já subrepticiamente mencionada ficção científica). infelizmente David Lapham precisou priorizar trabalho com remuneração melhor (family, mortgage) e foi trabalhar pras duas grandes, deixando inconcluso o último arco da trama. ele diz que vai voltar ao material e que pelo menos este número, o 41, vai ser feito.