Realidades alternativas não são novidade há um tempo. Toda mitologia, poema épico e ficção, qualquer que seja seu gênero, podem ser considerados dessa forma, como relatos possíveis somente em mundos paralelos.
Talvez isso justifique a atopia das peças de Bill Shakespeare, ou os erros de Stoker ao descrever o percurso de suas personagens até o cemitério em que Lucy está enterrada. Talvez não.
Bioy Casares descreve a travessia de um piloto de avião a um mundo em que o império cartaginês nunca foi derrotado por Roma. K. Dick elabora de modo convincente a geopolítica e a vida de uns poucos personagens no pós-guerra de um mundo em que o Eixo venceu. Até Nabokov colaborou com o subgênero da ficção científica ao descrever as aventuras sexuais incestuosas de meio-irmãos residentes na Antiterra. Margaret Atwood, uma das poucas mulheres a participar desse rol, puxa a brasa pra sua sardinha e expressa preocupações verdadeiras sobre problemas reais criando um mundo orwelliano em que as mulheres ocidentais são submetidas ao mesmo tratamento que as muçulmanas numa América do Norte fundamentalista.
League of the Extraordinary Gentlemen, uma das criações recentes mais bacanas de Alan Moore e Kevin O’Neill, teve suas raízes lançadas nas primeiras HQs que o primeiro escreveu quando assumiu SwampThing. Num texto que falava da participação da Justice League nas aventuras iniciais do Elemental, Moore compara o grupo super-heróico com uma reunião dos principais personagens dos romances de aventura do século XIX, talvez inspirado pelo trabalho de Philip Jose Farmer.
Conscientemente ou não, a idéia formulada nos 80 retornou no fin de siécle com a publicação do primeiro volume das aventuras conjuntas de Mina (ex-Harker) Murray, Allan Quatermain, Mr. Hyde/Dr. Jekyll, Hawlley Griffin (um dos homens invisíveis) e Capitão Nemo, reunidos pelo equivalente do MI5 da época para enfrentar um vilão oriental nos moldes de Fu Manchu que pretende cometer atos de terror contra Londres utilizando-se de uma máquina voadora movida a cavorita.
Na segunda aventura, o grupo enfrenta uma invasão marciana nos moldes do livro de Wells e, com a ajuda do Dr. Moreau, a vence.
Este fim de semana consegui terminar de ler Black Dossier, que é HQ, prosa, arte 3D e muito mais. Usando a narrativa seqüencial como frame device das outras linguagens incluídas no livro, os colaboradores mostram Mina e Quatermain numa Inglaterra equivalente a de 1984, nos anos 50 do século XX, recuperando o dossier que dá título a história e justifica excertos de uma peça nunca concluída de Shakespeare em que Prospero e Orlando são agentes da rainha britânica e das fadas Glorianna, relatórios de agentes secretos que tentam traçar os passos da equipe de Murray, um catecismo (nos moldes de Carlos Zéfiro), tiras de jornal sobre a vida e as épocas que a personagem de Virginia Woolf atravessou, simulacros de cartuns da revista Punch, trechos de prosa que cruzam o lovecraftiano Cthullu com o mordomo Jeeves e os beatniks com um plus: preocupação em fazer um pastiche convincente de ambos.
Tipo de publicação que tem alguma coisa pra cada pessoa e faz ter vontade de fazer algo parecido. Um fio narrativo que sirva pra acomodar materiais em mais de uma linguagem. Pra pensar.